Alguma coisa mudou no debate sobre raça no Brasil, e mudou
significativamente. Entre os que acompanham o tema há mais de uma
década, não houve quem não percebesse um deslocamento auspicioso, uma
ligeira mudança na correlação de forças, uma nova fresta aberta para a
luta afrobrasileira. A vitória unânime das cotas no STF é um capítulo
importante do processo, mas ela não foi, necessariamente, sua causa
principal. A histórica derrota imposta à ADI 186, do DEM, que pleiteava que o STF declarasse inconstitucionais as cotas raciais no ensino superior (depois de o STF as ter adotado para a contratação de seus próprios funcionários!), representou um emblema, uma espécie de alegoria deste novo momento da luta. A mudança é real, mas convém não exagerar na euforia: se há uma lei universal no combate, é a de que as coisas sempre podem piorar. Nos últimos meses, elas melhoraram um pouco, com acontecimentos que, talvez, possam fazer alguma diferença positiva na monstruosidade racista que são nossas prisões, escolas, polícias, ruas, hoteis e entrevistas de emprego.

O Brasil desenvolveu um elaborado aparato de denegação e acobertamento
de seu racismo, uma notável coleção de sofismas, falsidades, distorções,
meias-verdades e estereotipias que viajam entre a literatura acadêmica,
o discurso jornalístico e o senso comum dos beneficiados pelo racismo.
Ouvem-se com facilidade, no Brasil, comparações impronunciáveis em
outras comarcas, como “se for ter cota pra negro, por que não tem cota
pra canhoto ou pra gordo?” Também se legitimam discursos que misturam a
falácia e a mentira, como em “o problema não é racial, é social; só os
negros pobres sofrem preconceito, os negros ricos, não”, argumento que
não só afirma algo falso, já que os poucos negros ricos também sofrem
preconceito, aliás, violento, posto que o branco tende a perceber aquele
lugar de prestígio como seu e o negro bem-sucedido como um invasor. Ele
também recai na velha falácia de pressupor o que deve ser explicado. Se
há poucos negros ricos e muitos negros pobres, antes de provar que o
problema é social-daltônico, isso atesta que a desigualdade está
inscrita racialmente, sendo que esse próprio fato, invariavelmente,
deve ser lembrado ao negacionista que recorre ao argumento.

Entre os golpes sofridos pelo negacionismo brasileiro e por alguns de
seus principais porta-vozes no passado recente, contam-se:

1. *A desmoralização das referências aos “brancos pobres” contra as
iniciativas de cidadania para afrobrasileiros*. Qualquer um que conheça
a luta negra por cidadania sabe disso: no Brasil, só se lembra da
existência dos brancos pobres quando se trata de bloquear alguma
iniciativa em favor dos negros. O argumento ‘e os brancos pobres?’ é
invariavelmente usado por gente que jamais se mobilizou em defesa de
pobre nenhum, de qualquer cor. A prova definitiva aconteceu nos meses de
abril e maio, a propósito do julgamento de duas Ações Diretas de
Inconstitucionalidade interpostas pelo mesmo partido, o DEM, junto ao
Supremo Tribunal Federal. A ADI 186 solicitava à Suprema Corte que
declarasse inconstitucional o sistema de cotas para afrobrasileiros no
ensino superior, tal como já utilizado por mais de 50 instituições, com
resultados que apontam que a evasão escolar entre alunos cotistas é
menor que a registrada entre não-cotistas e que as notas daqueles são
iguais ou superiores às destes. Um dos argumentos arrolados foi o de que
o sistema de cotas deveria ser social, e não racial, já que não se
poderia discriminar os brancos pobres. Na semana seguinte, o mesmo
partido, em parceria com a Confenem (Confederação Nacional dos
Estabelecimentos de Ensino) interpôs a ADI 3330 pedindo a
inconstitucionalidade do ProUni, que é justamente um programa de ação
afirmativa para pobres independente da cor.

Não se viu, na primeira semana de maio, uma única palavra de contestação
à ADI 3330 por parte daqueles que utilizaram, na última semana de abril,
os brancos pobres como argumento contra a ADI 186. Percebe-se a
hipocrisia? Ali Kamel, respondendo por email ao convite da Al Jazeera a
um debate sobre cotas raciais (que Demétrio Magnoli aceitou, mas ele
recusou), lembrava que há mais de 30 milhões de brancos na situação de
pobreza que atinge a maioria dos negros e se dizia defensor das cotas
sociais, mas omitia o fato de que seu livro ‘Não somos racistas’ está
recheado de ataques ao Bolsa-Família, que é exatamente um programa de
transferência de renda para pobres independente da cor. Conclusão:
ficou demonstrado, caro amigo branco pobre, que aqueles que o evocam
para atacar as iniciativas de combate ao racismo não estão nem um pouco
preocupados com você.

2. *A categórica demonstração da compatibilidade entre as políticas de
ação afirmativa e o princípio constitucional da igualdade*. O
negacionismo brasileiro tem adotado, nos últimos tempos, estratégia
retórica de inaudita desonestidade: arrolar referências de grandes
líderes negros, como Martin Luther King Jr. ou Nelson Mandela, à luta
pela igualdade, como argumento contra as medidas de reparação de 500
anos de desigualdade vivida pelos negros. É como se essas medidas fossem
uma violação do princípio, e não uma tentativa de efetivá-lo. É como se
Martin Luther King Jr. tivesse dito que sonhava com um mundo em que os
homens não fossem julgados pela cor da pele no interior de uma luta
contra as ações afirmativas para os negros, e não no interior de uma
luta contra o linchamento e a desumanização dos negros. Demétrio
Magnoli, com arrogância de que só os verdadeiramente ignorantes são
capazes, chegou a balbucear
, em debate comigo e com Athayde Motta, na Al Jazeera, que o movimento negro brasileiro era tão poderoso que havia levado 10 Ministros da Suprema Corte a votarem contra a Constituição Federal. Mesmo que Demétrio Magnoli estivesse correto e estivessem errados os 10 Ministros
do STF (na verdade 11, posto que Dias Toffoli só se declarou impedido
porque já havia dado parecer favorável às cotas quando Advogado-Geral da
União), a frase ainda assim não faria o menor sentido. Por definição, o
STF não pode votar contra a Constituição, posto que o STF é a
instituição encarregada de definir o que a Constituição significa.

O Supremo já definiu em voto do relator Lewandowski, aliás riquíssimo
de referências que a igualdade ante a lei é um princípio geral que
deve ser efetivado, e que para tal propósito o Estado pode adotar tanto
políticas universalistas como ações afirmativas, que “atingem grupos
sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo a estes certas
vantagens, por um tempo limitado, de forma a permitir-lhes a superação
de desigualdades decorrentes de situações históricas particulares”. O
Ministro Lewandowski acolhia assim o belo axioma do sociólogo português
Boaventura de Sousa Santos: ‘temos o direito a ser iguais, quando a
nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes,
quando a nossa igualdade nos descaracteriza’. Não é difícil de entender,
mas os Magnolis só conseguem balbucear ‘a raça humana é uma só’ quando a
patente desigualdade da realidade efetivamente existente lhes é
esfregada nas fuças. Portanto, caro leitor, qualquer crítica às cotas
raciais baseada no argumento de que elas contrariam o princípio da
igualdade delineado pelo Artigo 5º da Carta Magna está agora,
oficialmente, morto. O Supremo já definiu que as ações afirmativas em
nada contrariam esse princípio, do qual, aliás, os negacionistas só se
lembram quando se trata de argumentar contra medidas de reparação para
os historicamente excluídos. Como bem demonstrou o poeta e jurista Pádua
Fernandes
, quando só havia cotas para brancos, os Kamels e Magnolis não se
lembravam do princípio da igualdade.

3. *A ampla circulação das estatísticas que demonstram o sucesso do
modelo das cotas e a explosão de estudos acadêmicos sobre o racismo, em
parte como resultado das próprias cotas*. Uma edição inteira da *Revista
Fórum* seria necessária para elencar todos os estudos que demonstram o
sucesso dos alunos cotistas nas universidades que adotaram a política na
última década. Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(Ipea) referente ao biênio 2005-2006 mostrou que os cotistas tiveram
melhor rendimento em 31 de 55 cursos da Unicamp e em 11 de 16 cursos na
UFBA. Na UnB, os cotistas tiveram melhor índice de aprovação (93% contra
88,9%) na média geral de todos os cursos. De acordo com o estudo
– Efeitos da Política de Cotas na UnB: uma Análise do Rendimento e da
Evasão, coordenado pela pedagoga Claudete Batista Cardoso, foram
constatadas evasão menor e notas maiores entre os estudantes cotistas em
27 cursos. Ainda na UnB, estudo de Jacques Velloso, da Faculdade de
Educação, conduzido com alunos que ingressaram à instituição em 2004,
2005 e 2006, não registrou diferenças significativas de rendimento entre
cotistas e não cotistas. Na conclusão do estudo, Velloso escreveu: “A
principal tendência constatada, que encontrou eco em evidências
empíricas de outras instituições, foi a da ausência de diferenças
sistemáticas de rendimento a favor dos não-cotistas, contrariando
previsões de críticos do sistema de cotas, no sentido de que este
provocaria uma queda no padrão acadêmico da universidade.”

Há um paralelo interessante, ainda pouco comentado, entre a adoção da
política de cotas no ensino superior e o aumento exponencial nas
dissertações e teses sobre a história e as várias manifestações do nosso
racismo. Uma pesquisa no banco de dados da CAPES mostra que justamente
as instituições nas quais as cotas foram adotadas passaram a capitanear
o estudo da discriminação e desigualdade raciais. Entre 2000 e 2004, foi
defendida uma média anual de 30,2 teses ou dissertações que tinham como
tema o racismo. Entre 2006 e 2010, essa média havia subido para 81, com
o recorde de 109 teses ou dissertações sobre o tema no ano de 2010. Há
uma relação clara entre a adoção do sistema de cotas e o incremento da
pesquisa acerca de temas relacionados ao racismo em disciplinas como
história, artes, Direito, urbanismo e literatura. Isso é fundamental num
país que é abissalmente ignorante acerca da história de seu racismo.

4. *A revelação de falsificações cometidas pelos grandes porta-vozes do
negacionismo na mídia brasileira*. Sempre foi amplamente sabido, pelos
estudiosos do tema, que livros como Uma gota de sangue, de Demétrio
Magnoli, e Não somos racistas, de Ali Kamel, contêm falsidades
grosseiras sobre o Brasil. O livro de Magnoli afirma com todas as letras
que o Brasil jamais teve ‘leis raciais’, esquecendo-se do decreto de 28
de junho de 1890, que proibia a entrada de africanos no Brasil, ou do
persistente impacto das políticas estatais de branqueamento no Direito
brasileiro, como o decreto-lei de 1945 que afirma, em seu Artigo 2:
“Atender-se-á, na admissão de imigrantes, à necessidade de preservar e
desenvolver, na composição étnica da população, as características mais
convenientes da sua ascendência européia, assim como a defesa do
trabalhador nacional”. São dois entre incontáveis exemplos de que
afirmar a não existência de ‘leis raciais’ na história brasileira não é
simplesmente uma distorção de perspectiva ou um problema de ponto de
vista. Trata-se de mentira, pura e simples. Uma entre várias contidas no
livro de Magnoli.

Se de mentiras se trata, no entanto, ninguém compete com Yvonne Maggie.
Seu combate às medidas de reparação cidadã para afrobrasileiros desta
vez incluiu a falsificação de citações do livro de Henry Louis Gates
Jr., Treze maneiras de olhar para um homem negro/ (ainda não traduzido
no Brasil). O caso foi revelado por Ana Maria Gonçalves
num texto para a *Revista Fórum*. Maggie misturava duas histórias diferentes e as desvirtuava completamente, num episódio que não pode ser atribuído à desatenção ou ao esquecimento. Ela atribuía ao ator Harry Belafonte, ativista dos direitos civis, e ao professor Henry Louis Gates Jr., conhecido lutador pelas ações afirmativas, frases que eles jamais pronunciaram, e que davam a entender que eles seriam opositores da luta
afroamericana por afirmação. Uma declaração de Belafonte, de que ele não
se prestaria a ser um palhaço da negritude para uma plateia de brancos,
é distorcida até que parecesse uma rejeição de qualquer espaço de
identidade afroamericana. Para isso, Maggie chegou a falsificar até
mesmo datas: os fatos, que não têm qualquer relação com a versão
apresentada pela antropóloga, ocorreram em 1960, e ela os situava em
1964, posteriormente à promulgação da legislação de direitos civis, para
que Belafonte pudesse assim aparecer como um negro que já havia
saído ‘do gueto’, como diz ela, e que a ele não queria voltar. Eram
citações inventadas, fraudadas, passíveis de interpelação inclusive penal.

Mas a mentirada de Yvonne Maggie não parou aí. Depois que o caso foi
denunciado num texto meu

na *Revista Fórum* (Ana o apontara, num texto longo que lidava com
muitos outros temas; eu fiz depois um post breve de denúncia só sobre o
fato), Maggie simplesmente suprimiu
de seu texto o parágrafo com as falsificações, sem qualquer aviso aos
leitores, como se ele jamais tivesse existido. Suponho que ela não
contava com a existência do Google Cache, que mantém fotografadas as
páginas da internet em forma anterior às suas edições mais recentes, nem
com o fato de que havíamos gravado as falsificações
. Depois
que exibimos a adulteração fraudulenta de seu próprio texto na Internet
durante 48 horas, Maggie publicou uma ‘errata’ em que atribuía a
falsificação a um ‘engano’, não explicava por que o buraco no texto
original havia permanecido sem aviso aos leitores durante dois dias, e
creditava a correção a ‘leitores’ inencontráveis em qualquer uma de suas
caixas de comentários. Sabemos que o desmascaramento da falsificação
circulou bastante nos meios acadêmicos do Rio de Janeiro e que a
reputação de Yvonne Maggie está agora mais desmoralizada do que já estava.

Os Magnolis e as Maggies estão na lona e sabem disso. Dentro em pouco,
já não serão as vozes privilegiadas pelo negacionismo. A mídia
brasileira já iniciou seu processo de reciclagem no tema, arrolando
figuras de credibilidade ligeiramente superior, como o ex-Reitor da USP
e ex-Ministro da Educação, José Goldemberg que, em artigo no Estadão

publicado imediatamente depois da decisão do STF, chamou os ‘professores
mais esclarecidos’ a ‘manter elevado o nível de suas universidades, sem
a adoção de cotas raciais’. O ‘nível elevado’ da universidade de
Goldemberg pelo jeito não inclui o respeito pela Sociologia ou pela
Estatística, disciplinas que já demonstraram que a presença de cotistas
em nada diminui a excelência acadêmica das instituições. Goldemberg, que
vem da Física e não das Letras, provavelmente não percebeu a ironia
implícita na etimologia da palavra usada por ele para caracterizar os
professores a quem convocou a manter os negros fora da universidade: ele
provavelmente acha que a sua escolha dos termos não tem nada a ver com o
racismo. A luta, como sempre, continua.

De: Leandro Salvático
Fonte: Revista Fórum

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