“Imaginar um Mumbai à africana” – Entrevista com Joséphine Ouedraogo, ex-ministra de Tomás Sankara

Os desafios imediatos para os movimentos sociais da África são enormes. Estão em jogo a necessidade de recriar a forma de fazer a política; propor novos paradigmas de participação cidadã; promover uma nova coerência entre o sistema educativo e a visão de desenvolvimento que deve ser questionada a fundo. Todos conceitos de síntese que se desprendem em um diálogo aberto com Joséphine Ouedraogo, secretária executiva da ONG “Meio Ambiente, Desenvolvimento, Ação” (ENDA-Terceiro Mundo, segundo suas siglas em francês), com sede em Dakar, Senegal. Ouedraogo, ex-ministra de Família e Solidariedade Nacional de Burkina Faso durante o curto governo revolucionário de Tomás Sankara (1983-1987), é uma das personalidades femininas mais conhecidas da África subsahariana. Sua organização assume um importante papel na preparação do Fórum Social Mundial 2011, que se realizará em janeiro desse ano na capital senegalesa. Entrevista exclusiva durante sua recente visita a Suíça, onde acompanhou a apresentação do novo Relatório da Unesco, denominado “Chegar aos marginalizados”.

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P: Qual é sua avaliação desse relatório sobre a situação da educação no mundo?
R: É um relatório completo; oferece muitas informações. Propõe estratégias e ações precisas, embora não particularmente originais. Não se pode esperar algo muito diferente de um relatório de uma instituição da ONU, elaborado com um marco institucional férreo definido pelos Estados membros.
É significativo que insiste em concentrar os esforços nos grupos mais marginalizados: populações de favelas, zonas rurais pobres, zonas de conflitos, campos de refugiados. Me interpela muito que uma das conclusões principais seja que por conta da crise atual a educação está em perigo; apesar dos meios financeiros e estratégicos que foram investidos pela comunidade internacional e pelos Estados.

A educação libertadora

P: Quais os pontos débeis dessa leitura da educação mundial hoje?
R: Dão a entender que o objetivo do documento é ser um alegado a favor de uma maior ajuda internacional a favor da educação. Como se a falta de recursos fosse a principal causa do fracasso do programa “Educação para todos”, da última década. O dinheiro não é tudo. Penso que o ponto débil do relatório é não ter articulado as políticas e estratégias de desenvolvimento com as políticas educativas. E tampouco ter estabelecido a relação mais profunda entre tudo isso e o nível político, social e educativo das diferentes populações do planeta.
Falta uma análise da relação estreita entre modelo de educação e modelo de “desenvolvimento”. E isso não pode ser separado. Na África subsahariana, as políticas educativas produzem os mesmos resultados que o modelo do sistema: exclusão, desemprego, pobreza. O mesmo problema, o mesmo resultado. No relatório não se manifesta uma visão diferente, alternativa…

P: Segundo sua afirmação, não existem hoje, na África, parâmetros educativos diferentes, paradigmas de reflexão…? Faltaria a colaboração do que significou, por exemplo, Paulo Freire para o Brasil e para a América Latina, com sua aposta em uma pedagogia da libertação…
R: Há intelectuais africanos que fizeram propostas. Existem relatórios, programas diferentes. Há africanos comprometidos que propõem uma verdadeira democracia que vai além das instituições e parlamentos. E há ONGs e associações, como ENDA, que impulsionamos outro tipo de trabalho com uma visão distinta. Porém, nem sempre se traduz em uma escala política. Continua imperando nos programas educativos -e na sociedade- o conceito da transferência do saber. Ele não é construído junto com as pessoas. A educação e a democracia devem ser uma construção comum em nossa sociedade. Deve-se alfabetizar utilizando as palavras dos camponeses, se vamos a uma aldeia que se dedica à agricultura. Temos que entender que o exercício da leitura e da escrita deve contribuir para a participação efetiva. Lamentavelmente, em geral, usa-se a leitura e a escrita para impor outros esquemas.

África e América Latina

P: Apesar de que é muito difícil comparar realidades tão distintas, o que hoje a América Latina tem que falta na África?
R: Falta essa identidade própria latinoamericana, com uma trajetória de construção dos últimos 50 ou talvez 100 anos. Penso que falta uma aliança mais estreita dos intelectuais com a população, com a base. Entender que devemos trabalhar com o povo, avaliar com ele. Aproximar-nos mais, estar mais em contato com as pessoas. Contamos com alguns partidos políticos muito avançados quanto à ideologia; com pensadores muito desenvolvidos; temos personalidades na África austral que têm tentado expressar a alma africana. Porém, há uma espécie de fratura entre a “inteligência” (os intelectuais) e as pessoas. Não para substituí-la, mas para que possa falar, que se coloque adiante.

P: Uma mudança de mentalidade… Uma nova cultura política africana?
R: Compreender e aceitar que nossa população pode ser ator político. Que pensa, que tem um saber acumulado. Expressar confiança nela mesma. Que não tenha complexo, nem se cale se chega alguém de fora com seu projeto de desenvolvimento e uma caminhoneta 4X4. Posso assegura-lhe que tem gente que se movimenta muito. Organizações camponesas e de mulheres que se mexem… Por exemplo, a vida expressada através das rádios livres, comunitárias, no Senegal. É uma grande riqueza. Já existe. Agora temos que pressionar aos dirigentes do país para que aceitem essas populações. Que falem juntos. Que entendam que não podem ser substituídas no pensamento. Que aceitem que são atores…

A potencialidade do Fórum Social Mundial

P: O Fórum Social Africano, em particular, e o Fórum Social Mundial podem ser espaços que reforçam essa nova forma de participação da base?
R: Claro! Está concebido para reforçar essa construção a partir da sociedade civil, dos que nunca tiveram possibilidade de expressar-se; para mostrar que estamos vivos. Quando se pretende impulsionar o desenvolvimento com projetos impostos, não funciona. Temos que acompanhar as pessoas pensando no futuro. Nunca se pergunta às pessoas o que querem, qual é a sua visão de futuro. Como se não tivessem futuro… E, no entanto, sim eles têm.

P: Nesse sentido, a realização do FSM em 2011 em Dakar, por segunda vez na África (em Nairóbi, em 2007), pode ser uma colaboração a esse processo?
R: Sem dúvida. Porém, temos que dar um salto qualitativo a partir do que se viveu em Nairóbi. A África da base deve estar presente em Dakar. Esse é o desafio que assumimos como secretariado do FSM 2011. Temos muito trabalho a fazer até 2011 e isso é essencial. Mover nossas contrapartes, as organizações de base, a população…

P: Na edição do FSM na Índia foi contundente a participação da base, dos movimentos sociais e, particularmente, dos intocáveis, dos sem casta… Em Dakar, devemos aspirar a uma espécie de Mumbai à africana?
R: Estamos pensando justamente nisso. Tirar lições. Como aprender com a história? Devemos tentar realizar um Mumbai em Dakar. Nesse sentido, o FSM de 2011 será uma grande oportunidade. Temos muito trabalho daqui para frente. É um processo. E após o FSM devemos continuar construindo. Porque o FSM é um espaço privilegiado. Está a África, estão os outros continentes do Sul; também o Norte solidário. São todas expressões dos povos. Todos nos sentimos responsáveis. Pensado diferente e buscando alternativas para um sistema que nos reduz a produtores e consumidores. Devemos encontrar um espaço próprio neste mundo globalizado, para poder expressar-nos, para viver algo diferente.

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O RELATÓRIO DA UNESCO EM CIFRAS

– O primeiro relatório “Educação para Todos” foi publicado em 2000.
– A partir daí, a cada ano, a Unesco apresenta um documento de seguimento.
– O atual, de 2010, denomina-se “Chegar aos marginalizados”.
– 72 milhões de crianças em idade escolar, do ensino fundamental, não podem hoje frequentar uma escola.
– 71 milhões de adolescentes no mundo inteiro não estão escolarizados.
– Os avanços na alfabetização de adultos têm sido pequenos. Todavia existem no mundo 759 milhões de pessoas maiores analfabetas.
– Para universalizar a educação fundamental até 2015, seriam necessários 10.300.000 professores suplementares.
– Para escolarizar a todas as crianças e adolescentes até 2015, a cooperação internacional deveria destinar 16 bilhões de dólares anuais.
– Esta cifra está longe do que a comunidade internacional realmente contribui atualmente.

Por: Sergio Ferrari
Fonte: Adital

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